Censura Nos Games: Carta Sobre O Projeto De Lei Do Senador Valdir Raupp

Queridos leitores do Cosmic Effect,

Apesar de usar o espaço desse blog para celebrar os nossos amados adventures, recentemente fui tomado por indignação ao ler na imprensa sobre um projeto de lei do Senador Valdir Raupp do PMDB (Rondônia). O projeto de lei, nº 170/06, cuja redação visa enquadrar os jogos violentos no artigo 20 da lei 7.716/89, que classifica como crimes passíveis de punição atitudes relacionadas a preconceito de raça ou cor, potencialmente pode transformar alguns títulos em, literalmente, coisa de racista, sociopata ou algo que o valha.

A partir daí, fiz o que todo gamer brasileiro deve se sentir estimulado a fazer: infelizmente meu voto não posso deixar de dar ao Congressista, pois o mesmo não está no meu Estado — apesar de manter-me atento ao posicionamento dos políticos quanto ao tema — mas posso, sim, enviar uma correspondência na esperança de elucidar o quão errado está pleitear essa lei, e o quão indignado estou e muitos brasileiros certamente estão.

Aproveitando a oportunidade do espaço, gostaria de compartilhar o texto da carta com vocês que, certamente, estão interessados no assunto — afinal, não somente trata-se do nosso hobby favorito, mas de um Direito Fundamental que, naturalmente, é averso à pura censura. Ela já foi enviadao ao Senador supra-citado.

Amigos, espero ter sido competente e representativo ao tentar traduzir em palavras o que nossos corações e mentes sentem numa situação como essa.

Prezado Senador da República Federativa do Brasil Valdir Raupp,

Com respeito, na posição de cidadão brasileiro, envio este email para tratar sobre o seu projeto de lei que censura jogos eletrônicos considerados inadequados.

Primeiramente, gostaria de expressar-lhe quão inversa é a pleiteada política de censura. A indústria dos videogames já supera Hollywood em faturamento, e tem se mostrado uma força no desenvolvimento econômico de vários países, tanto de primeiro mundo, como nos chamados “em desenvolvimento” — a exemplo do México, que atualmente devido a incentivos vive um momento de maior força consumidora desta mídia. Falando em mídia, é preciso que se entenda que os games, ou jogos eletrônicos, não são diferentes de qualquer outra forma de expressão de entretenimento ou arte, encontrando-se no mesmo patamar de filmes, quadrinhos, livros, música, animações; Ilustrações, quadros de pintura, desenhos. Em suma, são um fenômeno cultural, que gera milhões de dólares e milhões de apaixonados que encontraram nos videogames, um hobby, uma forma de diversão e o respaldo em números de pessoas adeptas e várias pesquisas universitárias em diversos países — pesquisas estas fatalmente não são levadas em conta em detrimento do discurso contrário, com base em pesquisas e declarações de profissionais que não representam a verdade absoluta sobre o tema.

As pessoas que não apresentam problemas psicológicos, dotadas de boa educação e que têm sua mente situada num mundo real, nunca vão confundir a ficção com a realidade. Negar a expressão, a fantasia, a diversão puramente ficcional para entreter as mentes dos indivíduos que só querem jogar para se divertir é negar a própria natureza humana, inclusive do ponto de vista histórico (nós evoluímos, não participamos mais de coliseus até a morte ou praticamos nenhuma barbárie com reflexos no mundo real). Nada disso tem a ver com práticas de violência, do mesmo jeito que nem tudo que se passa na televisão diariamente em qualquer horário se projeta como realidade para os telespectadores. Estes não passam a surtar e se comportar como um vilão de uma novela ou filme. Os games finalmente estão evoluindo como indústria no Brasil, nobre Senador; os benefícios da Lei Rouanet foram extendidos a essa forma de expressão, as empresas internacionais começam a investir em propaganda e versões nacionais dos seus produtos, com respeito ao consumidor brasileiro. Estamos entrando em compasso com o resto do mundo, não faremos mais uma vez do nosso querido país um exemplo de como fazer o inverso de quem está fazendo certo em todo o globo.

Saindo do espectro cultural, das reflexões econômicas ou até mesmo históricas do tema, gostaria de fazer uma breve consideração jurídica. Apesar de ter passado pela comissão como um projeto sem vícios de constitucionalidade, não é assim que eu e, com certeza, muitos juristas, posicionariam-se acerca do tema. É pura e simplesmente censura: não pode haver tamanha desconsideração de que o objetivo deste projeto de lei seja este, ao se impor um obstáculo a uma forma de expressão que não se difere de uma novela ou filme, puramente praticando-se um ato comparável às piores ditaduras que ainda existem no mundo. O Senador está propondo um atraso não só cultural, mas jurídico, de um tempo que o Brasil deve se envergonhar, de um tempo que não condiz com nossa Carta Maior de 1988. O combate na justiça a tal medida com certeza não vai passar em branco. Sendo aprovada — falo não em tom de ameaça, mas tomado do poder e desejo de cidadão — não vão faltar ações para defender o direito de expressão, o direito que não é de ninguém para ser tomado, que está garantido na nossa Constituição, que é o nosso guia de aspirações do que é um país justo. Lá, também, estão garantidas a Ação Popular, a ADIN e até mesmo outras medidas jurídicas, que de certo encontrarão respaldo num judiciário cada vez mais sensível à presença e importância do Direito Constitucional.

Outro fator que parece ser completamente ignorado: todos os jogos eletrônicos vendidos legalmente no nosso país têm indicação etária. Os pais decidirão se um menor pode consumir um jogo da mesma forma que decidem o que seus filhos assistem na TV ou no cinema. Claro que se pode argumentar se tais classificações realmente funcionam para os games, mas pergunto: será que funcionam inteiramente para a TV, ou para a internet, ou para os cinemas? Será que não ocorre em todo o Brasil a entrada proibida no cinema através da esperteza ou “delinquência” de um menor? Ou uma criança que vê algo impróprio na televisão quando todos acham que está dormindo? Será que o senhor Senador, ou nenhum dos nossos legisladores nunca transgrediu em busca do “proibido”, ainda que seja um proibido fundamentalmente ingênuo? Querer cobrir essas relações com leis irreais é achar que a legislação, muito embora seja vital num país democrático de Direito e essencial à regulação da vida social, tem poder quase onipotente, um “DEUS de Papel” que vigia o vigia — pois as classificações são isso, uma vigília que orienta os membros da sociedade, os pais, os detentores da educação doméstica. Ir além disso é invadir a vida privada fora dos limites do império da lei, o que não é cabível no nosso Estado Democrático de Direito.

Para finalizar, quero usar como exemplo a decisão judicial de um Magistrado do Estado de Minas Gerais, que sentenciou a proibição da venda de dois jogos em território nacional. Decisão esta atrasada, fora até mesmo do compasso tecnológico. Os jogos, hoje em dia, podem ser comprados inclusive em sistemas de distribuição 100% online. O que farão, então, os Legisladores de nosso país? Vão censurar a Internet também? Seremos o país do carnaval, do samba, do futebol e da alegria, com censura legitimada pela lei? Seríamos um país de esquizofrênicos?

Os videogames evoluíram. Muitos contam histórias, têm nos preconceitos ou atrocidades cometidas pelos personagens, contexto, consequências e moralidade, no sentido filosófico da palavra. Reiterando, mais uma vez: em nada difere de um filme, a não ser pelo acréscimo da interação, mas negar a interação não seria negar a evolução de como se contar uma história? Leis servem para acompanhar a evolução e não para alterar o progresso do mundo real, especialmente em tempos de internet, de globalização e de liberdade.

Sérgio Oliveira Filho
Estudante de Direito
Salvador – Bahia – Brasil

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